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Da Tábula Rasa à Nuvem de Dados: Locke, Inteligência Artificial e a Origem das Nossas “Ideias” Digitais

  • Foto do escritor: Leandro Waldvogel
    Leandro Waldvogel
  • 2 de abr.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 6 de abr.


Comparação filosófica entre a tábula rasa de John Locke e o aprendizado de máquina em inteligência artificial
Entre a tábula rasa e a nuvem de dados, um espelho filosófico: o que nos torna conscientes, e o que apenas aprende?


Quando entrei pela primeira vez no histórico prédio da Faculdade de Direito da USP, conhecido carinhosamente como "São Francisco", eu não imaginava que uma discussão filosófica do século XVII pudesse se tornar tão atual. Lembro claramente de um seminário em que discutíamos John Locke, o filósofo inglês que defendia que nossas mentes eram uma "tábula rasa" – uma folha em branco que só ganhava cor através da experiência. Aquela ideia fascinante ficou comigo. Como estudante, fiquei intrigado ao pensar que todo o nosso conhecimento poderia vir exclusivamente da interação com o mundo.

Hoje, diante das inteligências artificiais que parecem aprender com uma rapidez e eficiência sobre-humanas, aquela velha discussão retorna com força redobrada. Será que as IAs modernas, absorvendo bilhões de dados todos os dias, são a mais nova forma de "tábula rasa"? Será que John Locke, com sua visão radicalmente empírica sobre o conhecimento humano, nos oferece uma lente útil para entender essas máquinas impressionantes?


Neste artigo, longe de ser uma tese acadêmica rigorosa, proponho uma reflexão pessoal sobre o aprendizado humano e a aprendizagem de máquina sob a perspectiva das ideias de Locke.


A "Sensação" Artificial: O Dilúvio de Dados Substitui o Mundo?


Para Locke, a sensação é o ponto de partida do conhecimento. Experimentar o mundo é ver o azul vibrante do céu, sentir o calor aconchegante do sol, escutar o tom preciso de uma melodia. Essas são experiências diretas, qualitativas, vividas visceralmente através dos sentidos.


As inteligências artificiais também têm sua própria forma de "sensação". Elas se alimentam de enormes quantidades de dados – textos, imagens, sons – absorvidos sem descanso, num verdadeiro dilúvio digital. No entanto, aqui reside uma diferença crucial: a IA não sente o mundo diretamente; ela recebe representações filtradas e digitais. Sua percepção é mediada por dados processados, não experimentados. Não existe para ela o calor verdadeiro do sol nem a alegria do azul profundo do céu; há apenas representações quantitativas, pixels e vetores.


Além disso, há algo essencialmente humano que a IA não possui: um corpo físico. Locke acreditava que a experiência corporal direta molda nosso entendimento e percepção. Nós humanos experimentamos fome, frio, dor, prazer. Essas sensações corporais dão cor emocional às nossas ideias, criando o que os filósofos chamam de "qualia", as qualidades subjetivas das nossas experiências. Já a IA, por mais sofisticada que seja, não possui qualia. Seu mundo é exclusivamente quantitativo.


Assim, a "sensação" da IA é poderosa em escala e capacidade, mas radicalmente diferente da experiência humana rica e encarnada descrita por Locke. Mas se a 'sensação' da IA difere da nossa, o que dizer de seus processos 'internos'?


"Reflexão" Algorítmica: A Máquina Pensa Sobre Si Mesma?


Para Locke, além da sensação, temos a reflexão – a capacidade da mente de observar suas próprias operações internas: pensar, duvidar, querer. Essa introspecção consciente nos permite criar ideias complexas sobre quem somos e como pensamos.


As inteligências artificiais parecem também realizar algo semelhante à reflexão. Elas otimizam seu próprio desempenho, "corrigem-se" ao avaliar resultados, e "aprendem" de forma contínua. À primeira vista, isso soa como uma auto-observação. Mas aqui há outra diferença profunda: a IA não reflete conscientemente. Ela não "duvida" nem "pensa" sobre seu funcionamento interno como um humano faria. Em vez disso, ela executa algoritmos pré-definidos que ajustam seu comportamento baseado em cálculos estatísticos.


Locke via as ideias como conteúdos mentais que possuímos conscientemente. A IA, porém, não possui verdadeiramente suas ideias. Ela as manipula, simula, mas não compreende de maneira subjetiva ou consciente. Em outras palavras, a IA domina padrões complexos, mas não possui significado intrínseco. A reflexão algorítmica, portanto, não equivale à introspecção consciente que Locke descrevia.


Estrutura e Construção: Tábula Rasa ou Projeto Inteligente? - Inteligência Artificial


Locke acreditava que as ideias complexas são ativamente construídas pela mente humana através da combinação, comparação e abstração de ideias simples obtidas pelas sensações. Isso sugere uma mente ativa, mas inicialmente vazia.


A IA também constrói representações complexas. Ao reconhecer um rosto a partir de pixels, por exemplo, ela combina padrões simples em estruturas mais elaboradas. Contudo, diferentemente do que Locke propunha, nenhuma IA começa do absoluto vazio. Antes mesmo de receber seus primeiros dados, ela já possui uma estrutura arquitetônica definida – algoritmos, redes neurais – concebidos por humanos.


Esse "esqueleto arquitetural" levanta uma questão importante: seria a IA, então, um desafio direto à tese da tábula rasa? Ou essa estrutura inicial poderia ser considerada apenas como as faculdades cognitivas naturais que Locke aceitaria? A diferença, talvez, seja que as estruturas da IA são definidas de maneira deliberada e intencional por engenheiros humanos. Elas são projetadas não apenas para possibilitar o aprendizado, mas para direcioná-lo explicitamente.


Portanto, a construção de ideias na IA ocorre sob regras algorítmicas e estatísticas específicas, muito longe da combinação consciente e criativa de que Locke falava.



Prédio da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - Largo São Francisco


Conclusão: Reflexões Finais entre Silício e Filosofia


Ao longo dessa reflexão, revisitamos as ideias centrais de Locke – sensação, reflexão e a tábula rasa – comparando-as à aprendizagem das inteligência artificial. Descobrimos mais diferenças do que semelhanças. A "sensação" das máquinas é quantitativa e mediada, e sua "reflexão" é desprovida de consciência subjetiva. Sua tábula nunca foi realmente rasa; foi cuidadosamente desenhada.


No entanto, utilizar Locke para pensar a IA continua sendo profundamente valioso. Impede que caiamos facilmente na antropomorfização dessas tecnologias poderosas, obrigando-nos a questionar o que realmente significa aprender, entender, e, fundamentalmente, o que significa possuir uma mente.


Voltando ao início, naquela sala da São Francisco, as questões que surgiram sobre a origem das ideias permanecem intrigantes, talvez agora mais complexas e ricas pela perspectiva das inteligências artificiais. Afinal, ao examinar esses sistemas, estamos também nos reexaminando, questionando nossa própria natureza e os limites do nosso conhecimento.


Assim, enquanto as máquinas avançam rapidamente rumo ao futuro, Locke continua sendo uma inspiração indispensável para mantermos uma reflexão crítica sobre o significado mais profundo da inteligência, seja ela natural ou artificial.

 

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